sábado, 31 de janeiro de 2009

Revista do Espetáculo "ENCANTRAGO - Ver de Rosa um Ser Tão"


EDITORIAL

A revista programa do espetáculo ENCANTRAGO – Ver de Rosa um Ser Tão traz para o público, através dos textos e das imagens fotográficas, uma reflexão sobre as idéias que permeiam a encenação. O espetáculo é o resultado de 10 meses de trabalho de dois coletivos, o Grupo Expressões Humanas e o Grupo Teatro Vitrine.


O espetáculo é inspirado livremente na obra de Guimarães Rosa e na cultura popular Brasileira e dar continuidade a pesquisa da diretora Herê Aquino, dentro do Grupo Expressões Humanas, sobre os rituais humanos como um elemento essencialmente eficaz na arte teatral.
A pesquisa sobre os rituais pontua mitos, arquétipos, tradições e brinca de embaralhar o mundo real e simbólico para colocar na cena a ação, o épico, a fantasia, buscando ir além da linguagem puramente estética para apreender a essência das emoções suscitadas pelos rituais na cena teatral e desvelar o estado de efervescência emanado pelos atores e pelo público.




SINOPSE

“Encantrago – Ver de Rosa um Ser Tão” é o novo espetáculo do Grupo Expressões Humanas em parceria com o Grupo Teatro Vitrine. A direção é de Herê Aquino que também assina a dramaturgia, livremente inspirada na obra de Guimarães Rosa e na cultura popular brasileira.
O espetáculo é um mergulho no coração intratável e miraculoso do Brasil e uma aventura onde os contrastes e as ambivalências consagram o paradoxal mundo sertanejo e a encantada vastidão do homem.

A forte presença do universo fantástico, da riqueza do imaginário popular e o resgate dos rituais humanos têm o intuito de aproximar atores e público numa grande vivência integradora que nos remeta a origem do teatro. Essa provocação perpassa metaforicamente vários ritos de passagens, tempos, espaços e mitos que se reafirmam e se embaralham nesse mundo real e simbólico. Mundos estes que, no sertão, se configuram onde a vida é quase uma impossibilidade.

O espetáculo é um convite para fomentar um novo olhar diferenciado e crítico sobre esses inquietos e diversos pedacinhos de universos sertanejos. Acreditamos que acariciando ritualisticamente a geografia e o homem, chegaremos aos mistérios e grandezas feéricas do mundo, onde “mandavam a audácia e a coragem, e o mundo todo, e o inexplicável e o irracional, e a bondade e a maldade, e o destino e o demônio, e o que o homem de si mesmo não sabe, as suas profundezas.” Como dizia Guimarães Rosa.



A MUSICALIDADE DE ENCANTRAGO...

Traduzir musicalmente Guimarães Rosa é um desafio extremamente prazeroso, assumido com muita coragem e perseverança por nós que apresentamos Encantrago e, agora, partilhado com o público, que conosco completa o ritual do teatro. A partir do estudo da obra de Guimarães, inspirados na delicadeza e intimidade com a qual o autor consegue imprimir sua marca naqueles que o experimentam, nos conscientizamos de que cada elemento do espetáculo deveria oferecer ao espectador um caminho que ele, na verdade, já conhecesse por essência. Assim, a pesquisa musical de Encantrago se desenvolveu numa busca pela espiritualidade da cultura popular brasileira, presente no coração de cada um. Algumas canções são já conhecidas pelo público, extraídas da própria cultura popular, e o que trouxemos de original são composições construídas basicamente em cima de letras de Guimarães Rosa, utilizando ritmos populares, como o côco e a ciranda.

A cultura popular tem o poder de tocar as pessoas sem precisar contextualizá-las racionalmente. À medida que fomos trabalhando as músicas na montagem da peça, mesmo os atores que não tinham familiaridade com os ritmos foram descobrindo em seus corpos o pulsar de uma cultura que pertence a nós por herança. Oferecer esta mesma sensação para o público é uma experiência extremamente enriquecedora para nós, como artistas e como pessoas. Todos os grandes momentos de transformação na peça são cantados, sonorizados ou acompanhados pelo nosso aliado musical mais misterioso, o silêncio. Não há prazer maior que ver o espectador participando da cena, cantando conosco, partilhando esse brinde de profusa emoção: cantar o que se sente.

Juliana Veras
Atriz e compositora musical do espetáculo



A ILUMINAÇÃO QUE CONVIDA AO RITUAL/span>


Todos os elementos da cena se harmonizam para compor a vida no teatro. As idéias vão sendo expostas e vividas através de um teatro total, onde a ação, palavra, linha, cor e ritmo se fundem tentando transmitir o inenarrável, e o inexplicável dessa realidade crua e fantástica do universo sertanejo. 

Nessa encenação rejeita-se o decorativismo e o excesso de cor para priorizar os contrastes. Claro e escuro, iluminação mais periférica e a luz difusa das lamparinas e das velas vão nos remetendo a um aclaramento primitivo e ritualístico que nos faz, propositadamente, mergulhar na cena . 
Essa atmosfera sugerida pelo uso das lamparinas e velas não comunicam unicamente a luz, mas também a escuridão que nos remetem a um clima ancestral, onde as figuras aparecem rodeadas por zonas escuras, sugerindo a busca de um efeito luminoso que se perdeu no tempo, rico de referências antropológicas e culturais. Essa preferência tem o intuito de valorizar os silêncios, as intenções, a musicalidade, as lembranças e a criação de imagens singulares e arquetípicas que nos estimulem na busca por um teatro sensorial e ritualístico e que nos convide a vivenciá-lo. 

Wallace Rios
Ator e Iluminador


A universalidade de Encantrago – Ver de Rosa um Ser Tão

Trata-se de um texto, livremente inspirado na obra de Guimarães Rosa, resultado de uma visita que a diretora teatral Herê Aquino, fez ao nosso grande mestre da literatura brasileira e da qual resultou o espetáculo ENCANTRAGO - Ver de Rosa um Ser Tão.
“Procurei trazer para a cena essa complexidade do homem, do sertão e de Rosa, como se os três estivessem intrinsecamente ligados formando o indivisível, o uno.” Através do que se delineia como mais peculiar Herê Aquino mexe e remexe no que poderíamos chamar de “essencialidades Rosianas” para extrair daí o inenarrável, o inexplicável, o indizível e recriar a cena teatral.
Esse pensamento da diretora entra em consonância com as palavras de Guimarães – “não há, de um lado o mundo e, de outro, o homem que atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz.” - e estabelece uma cumplicidade que se resvala no texto e no processo de montagem do espetáculo.

O texto de “Encantrago” prioriza os contrastes e ambivalências para enriquecer o paradoxal mundo sertanejo onde ritualisticamente as coisas se consagram. Esse mundo que se configura onde a vida é quase uma impossibilidade é um mergulho no “coração intratável e miraculoso do Brasil” para a partir desse recorte, do homem cordial, ou seja, que age pelo coração, portanto pelos impulsos e pelo “arbítrio”, “O sertão é o desertão” – “É onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.” se chegar aos vastos espaços recheados da matéria prima onde esse homem povoa sua imaginação, criando e recriando a “fantasiação” e descobrindo um sentido para o existir.
É captando essa complexidade, que a diretora conseguiu chegar nessa investigação que ultrapassa o particular, demarcado por um estereótipo de um sertão geográfico e beirar a arrojada e desafiadora complexidade da universalidade humana.

“Encantrago” intui essa realidade real e simbólica para se construir de forma mais concreta na cena, confirmando que o teatro, propriamente dito, não é apenas o lugar dos corpos submetidos à lei da gravidade, mas também o contexto real em que ocorre um entrecruzamento único de vida real cotidiana e vida esteticamente organizada”. O teatro é só um pedacinho desse esmero de tantos artistas pesquisadores que em sintonia com a consciência, a sensibilidade, a percepção e a vida produzem o que chamamos de ARTE.

Portanto, para que a escrita cênica de “Encantrago...” fosse ritualisticamente representada no palco, forma e conteúdo transcenderam a dramaturgia e possibilitaram, através da concepção cênica da diretora e do trabalho dos atores, o espaço indiscutível da fabulação que é, propositadamente, a origem das veredas por onde fluem todos os grandes mistérios que compõem o imaginário do povo sertanejo.
Sendo assim, penso que o espetáculo demonstra não só um cosmo pré-estabelecido pelas tradições familiares e culturais que demarcam as fronteiras geográficas do sertão, mas e, principalmente, a força que se configura e que nos é maravilhosamente assustadora: a grandiosa universalidade dos vastos sertões humanos.

Zeila Costa
Mestre em Antropologia

Encantrago - Ver de Rosa um Ser Tão


“Encantrago - Ver de Rosa um Ser Tão” é o novo espetáculo do Grupo Expressões Humanas em parceria com o Grupo Teatro Vitrine. O processo de montagem do espetáculo teve início em janeiro deste ano e teve estréia em dezembro de 2008.

A dramaturgia, livremente inspirada na obra de Guimarães Rosa, foi pensada e desenvolvida através de uma pesquisa teórica e de campo sobre as particularidades e universalidades do sertão brasileiro. O texto prioriza os contrastes e as ambivalências do homem e do sertão com o intuito de enriquecer o paradoxal mundo sertanejo onde ritualisticamente as coisas se consagram. Esse mundo, que se configura onde a vida é quase uma impossibilidade, é um mergulho no coração intratável e miraculoso do Brasil e uma viagem cujo destino é a encantada vastidão que povoa, sensível e intuitivamente, a mente do homem sertanejo.

O espetáculo procura trazer para a cena a complexidade do homem, do sertão e de Rosa, como se os três estivessem intrinsecamente ligados formando o indivisível, o uno. O grupo acredita que precisa captar o que se delineia como mais peculiar nas “essencialidades Rosianas” e na cultura popular brasileira para extrair o inenarrável, o inexplicável, o indizível, recriando a cena teatral.
A concepção cênica, em consonância com as palavras de Guimarães - Não há, de um lado o mundo e, de outro, o homem que atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz - transforma “Encantrago – Ver de Rosa um Ser Tão” numa ópera brasileira, cuja travessia se faz através da cumplicidade entre o grupo e o público.

Esse jogo proposto pelo encontro configura-se, também, entre a razão e a imaginação e é concebido através de uma dialética “bizarra” e extremamente maravilhosa que se consagra na imagética criada por Guimarães e pela cultura popular brasileira e que se revela na “fantasiação” do homem rústico.


Foi para captar essa complexidade e chegar nessa investigação que ultrapassa o particular, demarcado por um estereótipo de um sertão geográfico, que fomos saborear mitos e arquétipos no intuito de beirar a arrojada e desafiadora complexidade humana.

O texto “Encantrago intui essa visão de mundo ampliada, mas essa só se constrói de forma mais concreta na cena, confirmando que o teatro, como disse Lehmann (2007) - não é apenas o lugar dos corpos submetidos à lei da gravidade, mas também o contexto real em que ocorre um entrecruzamento único de vida real cotidiana e vida esteticamente organizada.
Portanto, para que a escrita cênica de “Encantrago” fosse ritualisticamente representada no palco, forma e conteúdo transcenderam a dramaturgia, possibilitando, através da cena teatral, que a vida pulsasse sensível, estética e magicamente no teatro.

Pensando nisso, definimos o espaço cênico em um grande círculo marcado por terra e capiaus e de onde partem quatro veredas por onde a vida e a morte fluem. Esse pretendido “cosmos” que concentra toda a ação sai do domínio cronológico para o domínio circular criando, no espetáculo, a possibilidade mítica de espaço/tempo primevo.

O público senta-se entre as veredas, mas vez ou outra, será convidado a participar ativamente, do espetáculo, dentro da cena. Antes da entrada do espectador os atores iniciam sons com o intuito de criar entre eles o clima ritualístico do espetáculo. A partir da consolidação desse ritual inicia-se a entrada do público em grupos de quinze a vinte pessoas. Os grupos entram, primeiramente, num espaço “neutro” entre a sala de espera e o espaço cênico propriamente dito. Dois atores recebem os grupos, inserindo-os, também, num pequeno ritual que os integra a atmosfera proposta no espetáculo e os leva através de um cortejo ao espaço cênico onde os outros atores já estão. Nesse primeiro momento a única luz existente é a que emana das lamparinas que estão sendo manuseadas pelos atores.


O objetivo desse início é transportar o público para esse tempo/espaço primevo e, finalmente, com folhas secas que exalam cheiro e com terra, construir caminhos e veredas que serão pisados pelos atores e pelo público durante o trajeto. Esses elementos soltos no caminho, incorporam essa dimensão material que termina por ligar a natureza, com sua recriação mítica, aos elementos fogo, terra, água e ar, presentes, sobretudo, nas cerimônias e nos ritos de passagens da esfera humana.

O espaço cênico (círculo), a princípio no escuro, vai sendo iluminado pela luz difusa das lamparinas que chegam com os atores que trazem os grupos. O local no qual cada um vai sendo colocado, revela, aos poucos, pequenas situações criadas pelos atores através de partituras corporais. Essas partituras remetem à atividades reais e ao mesmo tempo simbólicas da vida sertaneja.

Em relação à iluminação a nossa preferência foi por uma luminosidade mais periférica e indireta com o intuito de valorizar as intenções, os silêncios e a criação de imagens singulares e arquetípicas que nos instigue na busca por um teatro sensorial e ritualístico.

Com relação aos efeitos sonoros e à musicalidade do espetáculo tudo foi construído sob a orientação de dois profissionais da área de música, canto e voz que desenvolveram com os atores essas potencialidades. O canto e a música são desenvolvidos pelos atores que também constroem os sons que remetem ao sertão. Os pequenos efeitos musicais dos utensílios utilizados são aproveitados formando uma sonoplastia rica e complexa. Todos esses sons são intercalados por pausas que valorizam o silêncio.

O espetáculo também traz para a cena a representação de manifestações fortemente inspiradas nas danças da cultura popular brasileira para, através de uma releitura, conseguir transcender à visão do traço puramente conservador das tradições e chegar significativamente a um espetáculo, cuja estética exprima a intrigante e perturbadora dimensão humana.

O intuito é fazer com que essa realidade, real e simbólica, que vai se construindo com o espetáculo, demonstre não só um cosmo pré-estabelecido pelas tradições familiares e culturais que demarcam as fronteiras geográficas do sertão, mas a força assustadora da grandiosa universalidade dos vastos sertões humanos.

A cena dilata enigmaticamente o micro para chegar ao macro e vice-versa. Sai do nada para chegar ao tudo e novamente voltar ao nada num eterno recomeçar, numa travessia silenciosa que se faz circular, repetitiva, ritualística. É assim, que essa aparente irracionalidade constitui-se em permanente fonte de poesia: o que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir, recriando-se. Morte e vida num eterno recomeço.

Para valorizar essa concepção, que ora se faz mítica, ora real, pesquisamos “O Mito do Eterno Retorno” de Mircea Eliade que ilustra, no espetáculo, a construção desse cosmos onde o real por excelência é o sagrado. Mircea Eliade diz que “Qualquer território ocupado com vista à fixação ou à sua utilização como espaço vital é previamente transformado de caos em cosmos; isto é, por um ritual, é-lhe conferida uma forma que o torna real.”

Talvez seja ousadia dizer que é a grandiosidade do homem que estamos procurando nesse espetáculo. Mas nós, diretores teatrais, atores, artistas contemporâneos, como investigadores da vida e da arte, precisamos buscar um traço de complexidade, um sentido de deformação que ora agride ora inquieta o espectador, mas que de forma alguma o deixa indiferente. A obra de Guimarães Rosa e a cultura popular brasileira possui essa inquietude que Guimarães traduz: “Como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e da cultura, vai se desenrolando, se destorce, se enforja, maleia-se faz mó do monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares-comuns, escapa à viscosidade, à indigência; não se estatela. Seus escritores não deixam”. 

Por isso acreditamos que o artista deve ser ousado na criação de sua obra ou, caso contrário, não passará de um mero reprodutor de seu tempo. Foi pensando assim que desejamos, antropofagicamente, comer nossas fontes de inspirações, não para desvendá-las ou consumi-las secamente, mas para nos embrenharmos em seus encantamentos que se prolongam nas perguntas, por exemplo, dos sertanejos, sobre o sentido da existência humana ou dos grandes mistérios do mundo.

Achar a essência de Guimarães Rosa e de nossa cultura e trazê-la para o teatro é não só uma constante provocação aos artistas que arriscam empreender essa travessia, como também, uma suscitação ao velho poder de sedução da arte nova que é revigorada pelo simples e pelo extremamente vivo. Afinal “a gente vive sem querer entender o viver? A gente vive em viagem.” porque “quem quer viver, faz mágicas”(Guimarães).

Herê Aquino
Diretora do espetáculo

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

As Máscaras de Clarice Lispector

Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste - Cultura 05/10/2007

Clarice Lispector encanta por conseguir falar do humano com uma propriedade de quem percebe o corpo como alma e arma dentro das debilidades da condição humana.

Alma e arma. O corpo como possibilidade concreta de expansão ou de prisão do ser? Não conseguimos resposta. Mas corremos para ela, somos de tal modo arrastados pelo seu fascínio, que já não conseguimos vislumbrar a grandeza escondida na falta de resposta.

Talvez tenha sido exatamente essa falta de resposta, que me estimulou na idéia da adaptação da obra para o teatro. Ela surge, portanto, como mais uma das inquietação que me movem numa pesquisa que venho desenvolvendo, já a algum tempo, sobre o ´absurdo´ na condição humana. Segundo Albert Camus o absurdo expressa, antes de tudo, a relação do eu com o mundo, e é experienciado como um divórcio ´entre o homem e a sua vida, entre o ator e o seu cenário´. Ele brota da cisão entre o desejo de unidade, de absoluto, e a pluralidade contraditória das idéias e dos fenômenos; entre a procura de uma salvação capaz de resgatar a finitude da condição humana e o inevitável fracasso que a caracteriza. Escreve Camus que o ´absurdo nasce deste confronto entre o chamamento humano e o desrazoável silêncio do mundo´.

Como nos textos do teatro do absurdo as histórias de Clarice Lispector não trazem grandes acontecimentos; ao contrário, seus personagens são seres imóveis, retidos em teias e em impasses que ultrapassam o meramente cotidiano. Seres adoentados da palavra e que procuram na palavra a cura. Só que a língua é o território da dessemelhança, uma torre de babel, fato que os leva a se defrontar, por fim, com um abismo de perguntas.

Por esta razão, Clarice é a escritora do Eu em pedaços, do olhar para dentro ou do olhar que cerca as criaturas, revelando-lhes os desejos, a ausência deles, as paixões, a ignorância, os mistérios, o sofrimento, a dor de existir. É a escritora da face explodida, condição afinal que define o homem no século 21 e que definiu, também, os dos séculos de guerras e pós guerras.

Tudo isso são inquietações que, juntando-se a outras que perpassam os problemas sociais, valorizam e tornam ainda mais complexa a busca pela compreensão da condição humana e que vem, de alguma forma, refletindo-se incisivamente nos últimos trabalhos que montei. Entre eles: Larilará Macunaíma Saravá, Deus Danado e Ritos do Absurdo, esse último trazendo fragmentos inspirados em textos de Samuel Beckett e Clarice Lispector.

Minha preocupação maior quanto à concepção do espetáculo ´A Hora da Estrela´, baseada, evidentemente, no romance de Clarice Lispector, está em conseguir transpor para o palco a tão almejada simplicidade buscada pela autora quando da criação de seu texto.

Por isso todo o trabalho de direção está sendo centrado na figura do ator que, através do seu corpo, ´sente´, ´interpreta´ e ´age´, por meio das palavra lapidadas de Clarice. Palavras que ´atravessam agudas o ar em busca de ações... palavra é ação´, como ela mesma diz.

De cenário, apenas duas cadeiras, uma mesinha com uma pequena caixa de madeira de onde Rodrigo S.M. tira pequenos adereços para compor, em quanto cria, os seus personagens.

A luz do espetáculo dará a localização quanto ao espaço e ao tempo necessário para o entendimento da obra, mas não será um tempo datado nem um espaço geograficamente localizado. Com isso queremos demarcar o sentimento universal contido na obra. É uma situação que pode acontecer em qualquer canto e em qualquer época. Basta que, para isso, existam dois seres que mesmo não sabendo porque tenham, em si, o sentimento de exclusão do mundo.

Macabéa é alagoana, tem 19 anos e foi criada por uma tia beata que batia nela. É totalmente leiga do mundo a sua volta e completamente inconsciente de tudo. Todo os dias ouvia a rádio relógio, porque ´era a rádio perfeita pois dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse precisar saber´. É feia e mora numa pensão em companhia de 3 moças que são balconistas em uma loja de departamentos. Esse é o perfil de Macabéa realçado por Rodrigo S.M. durante toda a obra. É o perfil, também, de milhares de moças nordestinas que vivem nas grandes cidades. É o macrocosmo refletindo o ´mundo de fora´, tão importante para se falar dessa irracionalidade que é a condição de miséria econômica onde estão mergulhados a grande maioria do povo brasileiro.

Mas Clarice Lispector ansiou trazer Macabéa para se grudar em nós como se grudou nela ´qual melado pegajoso´ . Não seria mais uma anônima, igual a milhares de nordestinos que vivem no Rio ou em outras grandes cidades, ´filhas de um-não-sei-o-quê que vivem com ar de desculpa por ocupar espaço´ e que devido a banalização da fome e da vida a muito deixamos de enxergar. Não, ela seria Macabéa, a nossa Macabéa, da qual não poderíamos fugir e nem fechar fingindo não estar vendo a alienação angustiante e sufocante que permeiam o mundo das milhares de Macabéas.

Nesse fragmento que se segue da Hora da Estrela, ´Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém´, encontra-se o retrato do capitalismo no que ele tem de mais cruel, a coisificação do homem e os homens como peças de máquinas facilmente ´substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam´.

Macabéas, Marias, Zé Ninguéns, ressaltam a falta de sentido de um mundo onde a miséria humana e moral e a não conscientização e não indignação do homem, demarcam o abismo onde cada vez mais nos afundamos. É um grito, um assovio, que atravessa agudo o vento escuro.

Segundo Aristóteles, Tragédia é o gênero teatral em que se expressa o conflito entre a vontade humana, por um lado, e os desígnios inelutáveis do destino, por outro. A decisão trágica se dá, portanto, entre os desígnios dos deuses e os projetos ou as paixões dos homens. Exprime o debate entre o passado mitológico e o presente da pólis, ou cidade.

Já Hegel, na sua estética diz: Aquilo que de fato interessa no drama, na tragédia e na comédia antiga é o universal e essencial da finalidade que os indivíduos realizam.

Nossa vida contemporânea, portanto, faz com que nossa carência esteja, ao mesmo tempo, em manter pontos de vista universais e em ajustar o particular, seja no que se refere à vontade seja no que se refere ao bom senso.

Estando nosso mundo limitado a uma pequena parcela do todo, isso impede que o sujeito se identifique com as grandes forças éticas e estas tenham neste sujeito singular o seu representante, que seria uma das características principais da tragédia antiga e o que, de alguma forma, afastaria Clarice da essência trágica no sentido clássico do termo.

As obras de Clarice são romances sem ação externa, voltada para o interior das personagens. Possui um caráter de introspecção, onde a autora mergulha em si mesma através de personagens construídas a partir de dores e angústia de seres humanos diante de um mundo que não os levam a realizações plenas. São verdadeiras elaborações existencialistas que refletem questões individuais e coletivas das grandes massas no universo mínimo de cada indivíduo. Isso colocaria, de alguma forma, Clarice dentro do que seria o sentido mais amplo e atual do termo trágico.

Mas a tragédia em Clarice, particularmente nessa obra, consistiu em ter que escrever um livro, como ´A Hora da Estrela´, que é uma verdadeira leitura da própria arte literária, dentro de um mundo caótico. Um mundo onde a arte parece representar muito pouco diante da fome, do medo e da dor coletiva dos milhares de humilhados e explorados do nosso mundo contemporâneo.

As personagens de Clarice Lispector são seres em buscas da revelação do mundo interior e desconhecido de nós mesmos. A existência exterior, enquanto percepção dos valores sociais opressivos, não é fator determinante nas suas obras, só tendo seu real significado enquanto causador de uma realidade interior eternizada pela possibilidade de uma descoberta completa do ser e do nada.

Mas isso, a meu ver, não minimiza nem desvaloriza a complexidade da obra de Clarice, nem tampouco distancia alienadamente a escritora do mundo a sua volta. É apenas um outro olhar, um ângulo diferente que nos faz mergulhar no âmago de suas personagens e conseqüentemente de suas vidas.

O que então continua nos atraindo para suas personagens? A profunda identificação com as dores e angustias existenciais. Aflições que nos remetem as dores e angustias do sentimento do universal, do sentimento de pertencer ao humano. Percalços da existência que não devem conter juízos de valores porque não são menor ou maior que nada, são apenas obstáculos que nos mostram as fragilidades humanas.

Herê Aquino
Diretora, pesquisadora e professora de Teatro