sábado, 31 de janeiro de 2009

Encantrago - Ver de Rosa um Ser Tão


“Encantrago - Ver de Rosa um Ser Tão” é o novo espetáculo do Grupo Expressões Humanas em parceria com o Grupo Teatro Vitrine. O processo de montagem do espetáculo teve início em janeiro deste ano e teve estréia em dezembro de 2008.

A dramaturgia, livremente inspirada na obra de Guimarães Rosa, foi pensada e desenvolvida através de uma pesquisa teórica e de campo sobre as particularidades e universalidades do sertão brasileiro. O texto prioriza os contrastes e as ambivalências do homem e do sertão com o intuito de enriquecer o paradoxal mundo sertanejo onde ritualisticamente as coisas se consagram. Esse mundo, que se configura onde a vida é quase uma impossibilidade, é um mergulho no coração intratável e miraculoso do Brasil e uma viagem cujo destino é a encantada vastidão que povoa, sensível e intuitivamente, a mente do homem sertanejo.

O espetáculo procura trazer para a cena a complexidade do homem, do sertão e de Rosa, como se os três estivessem intrinsecamente ligados formando o indivisível, o uno. O grupo acredita que precisa captar o que se delineia como mais peculiar nas “essencialidades Rosianas” e na cultura popular brasileira para extrair o inenarrável, o inexplicável, o indizível, recriando a cena teatral.
A concepção cênica, em consonância com as palavras de Guimarães - Não há, de um lado o mundo e, de outro, o homem que atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz - transforma “Encantrago – Ver de Rosa um Ser Tão” numa ópera brasileira, cuja travessia se faz através da cumplicidade entre o grupo e o público.

Esse jogo proposto pelo encontro configura-se, também, entre a razão e a imaginação e é concebido através de uma dialética “bizarra” e extremamente maravilhosa que se consagra na imagética criada por Guimarães e pela cultura popular brasileira e que se revela na “fantasiação” do homem rústico.


Foi para captar essa complexidade e chegar nessa investigação que ultrapassa o particular, demarcado por um estereótipo de um sertão geográfico, que fomos saborear mitos e arquétipos no intuito de beirar a arrojada e desafiadora complexidade humana.

O texto “Encantrago intui essa visão de mundo ampliada, mas essa só se constrói de forma mais concreta na cena, confirmando que o teatro, como disse Lehmann (2007) - não é apenas o lugar dos corpos submetidos à lei da gravidade, mas também o contexto real em que ocorre um entrecruzamento único de vida real cotidiana e vida esteticamente organizada.
Portanto, para que a escrita cênica de “Encantrago” fosse ritualisticamente representada no palco, forma e conteúdo transcenderam a dramaturgia, possibilitando, através da cena teatral, que a vida pulsasse sensível, estética e magicamente no teatro.

Pensando nisso, definimos o espaço cênico em um grande círculo marcado por terra e capiaus e de onde partem quatro veredas por onde a vida e a morte fluem. Esse pretendido “cosmos” que concentra toda a ação sai do domínio cronológico para o domínio circular criando, no espetáculo, a possibilidade mítica de espaço/tempo primevo.

O público senta-se entre as veredas, mas vez ou outra, será convidado a participar ativamente, do espetáculo, dentro da cena. Antes da entrada do espectador os atores iniciam sons com o intuito de criar entre eles o clima ritualístico do espetáculo. A partir da consolidação desse ritual inicia-se a entrada do público em grupos de quinze a vinte pessoas. Os grupos entram, primeiramente, num espaço “neutro” entre a sala de espera e o espaço cênico propriamente dito. Dois atores recebem os grupos, inserindo-os, também, num pequeno ritual que os integra a atmosfera proposta no espetáculo e os leva através de um cortejo ao espaço cênico onde os outros atores já estão. Nesse primeiro momento a única luz existente é a que emana das lamparinas que estão sendo manuseadas pelos atores.


O objetivo desse início é transportar o público para esse tempo/espaço primevo e, finalmente, com folhas secas que exalam cheiro e com terra, construir caminhos e veredas que serão pisados pelos atores e pelo público durante o trajeto. Esses elementos soltos no caminho, incorporam essa dimensão material que termina por ligar a natureza, com sua recriação mítica, aos elementos fogo, terra, água e ar, presentes, sobretudo, nas cerimônias e nos ritos de passagens da esfera humana.

O espaço cênico (círculo), a princípio no escuro, vai sendo iluminado pela luz difusa das lamparinas que chegam com os atores que trazem os grupos. O local no qual cada um vai sendo colocado, revela, aos poucos, pequenas situações criadas pelos atores através de partituras corporais. Essas partituras remetem à atividades reais e ao mesmo tempo simbólicas da vida sertaneja.

Em relação à iluminação a nossa preferência foi por uma luminosidade mais periférica e indireta com o intuito de valorizar as intenções, os silêncios e a criação de imagens singulares e arquetípicas que nos instigue na busca por um teatro sensorial e ritualístico.

Com relação aos efeitos sonoros e à musicalidade do espetáculo tudo foi construído sob a orientação de dois profissionais da área de música, canto e voz que desenvolveram com os atores essas potencialidades. O canto e a música são desenvolvidos pelos atores que também constroem os sons que remetem ao sertão. Os pequenos efeitos musicais dos utensílios utilizados são aproveitados formando uma sonoplastia rica e complexa. Todos esses sons são intercalados por pausas que valorizam o silêncio.

O espetáculo também traz para a cena a representação de manifestações fortemente inspiradas nas danças da cultura popular brasileira para, através de uma releitura, conseguir transcender à visão do traço puramente conservador das tradições e chegar significativamente a um espetáculo, cuja estética exprima a intrigante e perturbadora dimensão humana.

O intuito é fazer com que essa realidade, real e simbólica, que vai se construindo com o espetáculo, demonstre não só um cosmo pré-estabelecido pelas tradições familiares e culturais que demarcam as fronteiras geográficas do sertão, mas a força assustadora da grandiosa universalidade dos vastos sertões humanos.

A cena dilata enigmaticamente o micro para chegar ao macro e vice-versa. Sai do nada para chegar ao tudo e novamente voltar ao nada num eterno recomeçar, numa travessia silenciosa que se faz circular, repetitiva, ritualística. É assim, que essa aparente irracionalidade constitui-se em permanente fonte de poesia: o que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir, recriando-se. Morte e vida num eterno recomeço.

Para valorizar essa concepção, que ora se faz mítica, ora real, pesquisamos “O Mito do Eterno Retorno” de Mircea Eliade que ilustra, no espetáculo, a construção desse cosmos onde o real por excelência é o sagrado. Mircea Eliade diz que “Qualquer território ocupado com vista à fixação ou à sua utilização como espaço vital é previamente transformado de caos em cosmos; isto é, por um ritual, é-lhe conferida uma forma que o torna real.”

Talvez seja ousadia dizer que é a grandiosidade do homem que estamos procurando nesse espetáculo. Mas nós, diretores teatrais, atores, artistas contemporâneos, como investigadores da vida e da arte, precisamos buscar um traço de complexidade, um sentido de deformação que ora agride ora inquieta o espectador, mas que de forma alguma o deixa indiferente. A obra de Guimarães Rosa e a cultura popular brasileira possui essa inquietude que Guimarães traduz: “Como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e da cultura, vai se desenrolando, se destorce, se enforja, maleia-se faz mó do monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares-comuns, escapa à viscosidade, à indigência; não se estatela. Seus escritores não deixam”. 

Por isso acreditamos que o artista deve ser ousado na criação de sua obra ou, caso contrário, não passará de um mero reprodutor de seu tempo. Foi pensando assim que desejamos, antropofagicamente, comer nossas fontes de inspirações, não para desvendá-las ou consumi-las secamente, mas para nos embrenharmos em seus encantamentos que se prolongam nas perguntas, por exemplo, dos sertanejos, sobre o sentido da existência humana ou dos grandes mistérios do mundo.

Achar a essência de Guimarães Rosa e de nossa cultura e trazê-la para o teatro é não só uma constante provocação aos artistas que arriscam empreender essa travessia, como também, uma suscitação ao velho poder de sedução da arte nova que é revigorada pelo simples e pelo extremamente vivo. Afinal “a gente vive sem querer entender o viver? A gente vive em viagem.” porque “quem quer viver, faz mágicas”(Guimarães).

Herê Aquino
Diretora do espetáculo

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